Morreu há
alguns anos atrás, mais precisamente num mês despedaçado, o mais importante
petrolinense que tive a honra de conhecer e ouvi-lo falar na sua distante
mansidão, na sua atormentada placidez, nos seus retoques sem muitas ambições e
dotado do requinte celeste dos astros iluminados que brilham nas estepes como lírios
de fogo, pois sua frenética evocação já era maior do que as histórias orais
que se contavam aos montes sobre sua
notória rebeldia, relatados às várias bocas
pelos que o julgavam como um louco ou uma manifestação
folclórica. Não havia dúvida que poderíamos trata-lo como o nosso cavaleiro
mais ilustre, dono de uma beleza muito íntima. Há dias, via-me triste e perturbado com o
curso da sua enfermidade. Sua dor silenciosa e de ressonância particular me
incomodava profundamente, pois na sua presença se podia ver que era um sujeito forte e valente, que se resguardava e se fortalecia
dia a dia com o brilho do sol de sua terra e a presença do rio em sua vida,
frente aos vários desassossegos que enfrentava. Hoje entendo que o excêntrico e amável
Celestino Gomes se eternizou ao dar vida e
sentido a tudo que fez na genialidade do
seu traço, que se alinhava à inquietação latente
da sua triste existência de peregrino solitário. Tudo em si afirmava o primado
dos valores que vivamente assimilava,
impregnando seus quadros de uma eclosão de essências
documentais. No dia da sua partida, percebi o
quanto Petrolina ficou mais umedecida diante da incerteza das horas. E só uma
cidade sabe o que é não ter mais por perto a força de
um grande olhar, na figura do seu maior
artista. Petrolina perdeu não só um dos seus maiores memorialista, que não se
cansou de retratá-la, mas a doçura de um ser que transcendeu as suas esquinas,
as suas praças, as suas ruas, ao seu encanto. Seu desaparecimento nos deixou também muito pobres. Era a enigmática
presença de um ícone de luz que transparecia sua tristeza nas delações pessoais
que fazia, atemorizado com os rumos que o conduziria a outra cruzada
espiritual. Agora compreendo que a arte ribeirinha ficou sem uma de suas vozes
mais libertárias. Sua independência diante das convenções sociais incomodava e
causava calafrio em muitos figurões desta astuta e insensível paragem de
tropeiros, beradeiros e aventureiros,
porque Celestino Gomes era capaz de alçar voos muito altos, diante da tomada de
uma decisão em favor dos muitos esfaimados pela sorte. Mas Celestino seguiu seu
curso natural, ao enfrentar o desconhecido. A
vivacidade que protelava sua inspiração traria o reconhecimento tardio da sua produção
artística e, somente a posteridade saberá coroa-la com a grandeza do sertão que
ele imortalizou, já que com indiferença foi tantas vezes julgado e
impiedosamente atacado. Ao refletir sobre a
morte do poeta dos pincéis celestiais,
veio-me em pensamento aquilo que iguala tudo e
todos, frente ao real espelho do sofrimento, e fui calado com a sublime
provocação de que o veio principal de um coração bélico, como o dele, era
possuir o ideal da redenção daqueles que sonham com o enriquecimento humano dos
que o circundam. Agora posso chamá-lo, como dizia Miguel de Cervantes, do seu cavaleiro da triste figura –; ele era um
quixotesco perfeito. E foi esta figura universal que recobrou da minha ingênua
escrita à candura das muitas perguntas que fervilhava a minha emoção naquela manhã ao ver seu corpo sendo levado ao
cemitério, diante de uma cidade estranha, rude, cinzenta, pálida e perdidamente
enlutada... Presumo ser apropriado falar do velho Celestino Gomes, quando ele
mesmo se predispôs a se identificar retratando o Vale do São Francisco como sua pátria afetiva, em variados tons,
passível de multiplicidade melódica, ritmada em pinceladas de vibração
estonteante. Nesses instantes, sua realçada maturidade, sem enfeites nem
adereços, falava através dele, ao
retratar a realidade de sua gente, ao tempo em que a ninguém deixou
indiferente. Celestino não estava, de forma alguma, alheio à importância
daqueles com os quais se defrontava. No entanto, julgou-os a todos sem que
jamais alguém pudesse perceber qual seria a sua verdadeira intenção. Mesmo
assim, sua obra falará por si, pois registrou sua própria temporalidade, no
gratuito desfilar de suas personagens, nas cores e contrastes de sua querida
terra. Não se tratava propriamente de uma releitura caricatural, mas de um
gênero em tons de despedida, de quem se esforçava de forma sincera para
recompensar aquilo que lhe era peculiar, no refúgio das coisas imprecisas,
dispersas pelo mundo, acolhendo também o seu retorno, despendido por tão longo
período em prol de um trabalho já bastante consolidado.
Sua intuitiva passividade, mais tarde, serviria de panorama para as diferentes
reminiscências de um caráter pessoal, independente e evoluído. No entanto, o
que conta, o que pesa mesmo é o fabuloso registro da sua aldeia, que ele parece
ter arquivado e que um dia retornará com a redobrada força de seus mistérios. Ao retratar seus feitos, em dois livros, a sua
imponente experiência cresce e se enaltece, pois passados alguns anos da
publicação e diante do seu imaginário pictórico, podemos presumir o quanto – o
velho pintor do rio – já se conhecia e se autorretratava com perfeição. Da
mesma forma, e com o mesmo vigor característico, Celestino Gomes perambulava
pelas ruas e se defrontava com a hostilidade dos olhares para com ele, mas
conservava sempre aquele mesmo ar entre espantado e severo, de quem adivinhava
o que iriam fazer com sua memória. Sua
impoluta liberdade obrigava os altivos e orgulhosos a se curvarem diante dele,
não por reverência, mas apenas para ouvi-lo melhor, em atenta cordialidade à
sua sublime compreensão de vida diante da decomposição dos claros estigmas, o
que dava afinal o mesmo resultado, devido à sabedoria que brotava dos seus
vivos olhos azuis. Neste pequeno painel de recordação, Celestino Gomes estará
sempre revestido de muita luminosidade e simplicidade. Suas lembranças, mesmo
que diminuída com passar dos anos, sempre me resguardará uma atenção quase
sardônica. Mas estou falando dessa estranha personagem, e o apresento como um
imenso simulacro de
considerações nas suas infindas investigações, no empenho de atingir o
senso daquilo que lhe é essencial na sua substância plástica, na matéria
palpável de sua deslumbrante personalidade, como um misto lamentável de não ter
tido a honra de conhecê-lo a fundo, na romântica petrolinidade desse nosso herói, que sempre merecerá ser lembrado
como o mais notável cidadão petrolinense. Sua
intensa criatividade era sempre vista como uma joia de raríssimo valor, porque
sem escrever um único verso, se tornou realmente um grande poeta; retinha “uma candura que insiste em dizer-nos que és
feito do fogo, do rio e de sol”.[1] Seus tons de cinza, vermelho china,
verde desbotado e azul cerúleo, nos lembra o extraordinário pintor holandês em
seu canibalismo, empunhando sua expressão ameaçadora. E repito na insistência
das palavras, Celestino sempre será reluzente, mesmo quando ignorava o sentido
simbólico de suas ações e principalmente diante de sua expressiva nostalgia de
menino afoito e matreiro. Nisto, ele se parece com um pequeno e sábio corvo –
sabendo que essa ave é o símbolo das ideias primordiais –; na sua proposital
humildade diante do desapego que o revestia de
celestes “arco-íris tingidos de
tonalidades que nos acalentam e libertam”,[2]
mas já vivendo num plano superior, como todas as aves solitárias. Na noite do
falecimento total da sua lida de almirante, o céu se desmanchou e transbordou em lágrimas. Há muito ninguém o
percebia passeando no Cais dos Guararapes;
à beira do velho rio –; sua morada jeitosa, para onde queria ser levado para um
último adeus. Era um pedido longínquo. A sua sina de marinheiro e boêmio em
peregrinação, o tinha deixado numa ressaca interminável com os fatos do
cotidiano, preferindo o isolamento sucinto nas plagas da ilha do silêncio; na
torre do seu castelo de sonhos, ilusões, devaneios e lutas infindáveis para
escapar do frio daquele degredo. O continente, naqueles dias, só ficou sabendo
das últimas notícias porque os ventos do norte trouxeram mensagens da
península, onde não mais poderia habitar por falta de proteção. Era o
desaparecimento de um mito, que por toda a vida
migrou pelos caminhos, de sua infinita paz interior, na labuta contra o
isolamento, chegando mesmo a ver caravelas onde só havia o desolado vai e vem
das ondas que abrigavam sua nobreza e caráter. Seu último pedido foi que o
enterrassem com sua magnífica espada numa encosta da ilha;
perto do rio – longe de tudo e de todos – Já estava muito além do lugar comum!
O próprio dizia, mesmo que ninguém o tenha visto falar, que possuía dois amigos
muito próximos: um deputado da República
para em fraternidade trocar confissões ao relembrarem a infância de outras épocas, e um talentoso escritor, para os bordejos
mais sinceros na elegante miragem que o rio os proporcionava ali na beira das
tardes, na companhia solícita do pôr do sol. Na verdade, nunca houve muita
conversa nesses encontros, pois ambos pensavam a vida e, por entre becos e
alamedas, o diálogo acabava estacionando-os nos casarios da Rua do Grude numa solidão simples, cheia
de pressentimentos, amargos contentamentos e uma viva esperança no futuro
ausente. Era assim a sua vida nas barrancas do São Francisco. Sua trajetória fora uma grande e tumultuosa lenda, gerada a partir
de aflições monumentais. Enterrou vidas e viveu suficientemente bem para sofrer
sete solidões e se maldizer do que viu nesses longos anos de trabalho. Era como
se uma ordem secular partisse e deixasse o sentimento de ameaça tomar conta da
sina dos seus contemporâneos. Muitos diziam que ele não fazia parte deste
mundo, possuía um particular, pois vivia encourado nas vestes da honestidade, e
sua rápida transposição era o que muitos almejavam, para fazer-se esquecer do
que um dia fora dito de sua boca em profecias malditas que afetaram os brios
católicos da província mestiça
com ares de pureza, mas com traquejos de uma sociedade sem tradição nas ideias.
Era como se costumava dizer daquele citadino, de relevância sutil e encanto
singular, que aos poucos, transformava sua estética quase mítica numa lembrança necessária. Poucos foram os que
puderam contemplá-lo nestes últimos anos em que sua intransigente irreverência
celebrava conflitos e aparições ilusórias, porém alimentavam sua assombrosa
imaginação para os devaneios e os alentos nas sobrevidas do Velho Chico. O lema dos seus dias sempre
fora a esplêndida familiaridade com o abandono em sua total imparcialidade; era
um humanista que sonhava com um mundo liberto de
tiranias. Neste instante se saúda sua memória,
arrastando pesares cerimoniosos em respeito ao pensador anarquista que olhava a
todos como se tivesse pagado para ver um espetáculo. Ao morrer deixou escrito
um inventário sobre suas vivências, que poderá ser lido como fenomenologia
dessa Modernidade tão insipiente, transparecendo sua lucidez para afirmar sua
condição de filósofo, a nos mostrar as dores de parto da era industrial, onde o
ser não tem espaço diante do profundo
vazio proposto pela especulação niilista, nem olha dentro de si mesmo, frente a
imensurável frieza nas relações humanas. Falarão no futuro que àqueles que
estão perdidos sobre um abismo e em contato com
a imensidade, ficam abandonados a todos os excessos do heroísmo, da loucura ou
do horror. Evidentemente, que sua conduta jamais será submetida à prova de tão
horrenda força diabólica, visto que a realeza dos seus atos de lealdade será
nitidamente visto como algo que sucumbiu ao isolamento mais absoluto e fora
capaz de esperançar, viver e lutar pelas mais nobres
causas. Sua elegância tornava o
funeral um tanto quanto sinistro; sua companheira de sempre – a solidão –
estava lá, ao lado de um cão em silêncio, contemplando uma nova perspectiva
sobre a alma do féretro –; montavam guarda como negros corvos. Havia uma
mensagem implícita de que não gostaria de morrer com terrores suplementares,
mas tranquilamente, numa espécie de sono sereno. Parafraseando o escritor
inglês Joseph Conrad, certa aptidão para a morte não é coisa tão rara, mas o
que é raro é encontrar homens cujo coração, revestido de uma impenetrável
armadura, esteja pronto para conduzir até o fim uma batalha perdida. Só os que
lutam contra forças brutais conhecem bem esse desejo; homens que entram na história
pela porta da frente, enfrentando as cegas potências da natureza ou a
brutalidade estúpida das multidões. A alusão despertada por essa imagem, recortada de
Conrad, nos faz pensar tão mais na importância das referências dos grandes
artistas por recuperarem do esquecimento
àquilo que em prece sepultada, traz do passado o seu longínquo espírito
multifacetado, ensejado da poesia que foi capaz de conceber, traduzido nos
atentos gestos os acenos da saudade – ou, como diz Adorno em seu ensaio Sobre a cena final do Fausto: “Esperança
não é a lembrança fixada, mas sim o retorno do esquecido”.