quarta-feira, 26 de março de 2014

Núcleo de Estudos Foucaultiano


 
 
Os Ímpetos de Um Esteta Solitário
 
 
 
Núcleo de Estudos Foucaultiano © Gênesis Naum de Farias
- Professor da Universidade Estadual do Piauí – UESPI.
São Raimundo Nonato/PI/Brasil.
 
 
 
Os últimos anos de vida do pintor italiano Amedeo Modigliani (1884-1920) retratam o que sua própria sina documentou em seus feitos gloriosos: era um tormento vigiado de perto pelas frias noites de desilusões e glórias. Talvez retratassem seu estilo puro e paciente ao ver as coisas na elegância de um tempo sofrivelmente cansado de aparências e vanguardas ciumentas. Ao tempo de uma existência, como poderia se definir para despersonificar a essência dos contrastes que o envolvia nas incertezas do seu nítido silêncio? Primeiro, seria preciso dizer que era um homem do mundo, habitado por muitos lugares e composto por uma simbologia frenética, permeada de muitos desencontros. O existir nesse caso, já efetivava configurações de certa melancolia, com oscilações de temperamento que tendia a lembrar a nebulosidade criada pelas marcas do fracasso. Em tudo absorvia o herói ultra-romântico; na forma, nas ideias, nos hábitos, nas singularidades; em tudo marcado por um profundo mal-estar, que o consumirá por um tédio incurável.
Em sua obra a preocupação estética vai muito além de uma pretensa necessidade de representação, pelo contrário, empenhava-se em captar não meramente a aparência, mas a personalidade de seus modelos. A franqueza era uma competência a mais quando a sua nítida capacidade de alcançar a alma de quem o retratava, transmitia muito do que realmente sentia ao descrever a essência do que pintava, captando através da luminosidade opaca, o onírico de um simples olhar que se abria como janelas da alma. Ao perceber isto, Modigliani traçava seu rumo nas artes daquele tempo, frente aos tormentos íntimos de um vazio fantasmagórico.
Nesta busca pelo absoluto e fugindo sempre das convenções sociais para preencher sua necessidade de silêncio, torna-se tudo e nada ao mesmo tempo. No entanto, enfrentou com vivacidade o cotidiano por combinar ações e trejeitos de um dândi na Paris urbanizada, ao tempo em que buscava para si a ternura de um humilde eremita a procura da irretocável sublimidade nos gestos mais sinceros.
Morto aos 35 anos, Modigliani foi maior que a sua própria obra. Na verdade, seu nome é lembrado na história da arte contemporânea como um feito trágico na desordem monótona de uma época recheada de grandes vultos, onde o improviso não cabia nem era aceito como padrão, isto porque num século de grandes ideias, suas ações eram movidas pela capacidade de viver na intensa sintonia de uma lida cheia de presságios e atribulações. Como suas figuras de olhar vazios, o artista proclamou sua marca numa época atormentada. Tendo sido na realidade composto por referências que davam sentido ao que procurava, se propôs na busca pelo absoluto de tudo: de romanesco a anarquista, tudo o encerrava num ermo de incompreensões, diante do verniz aristocrático, pueril e provinciano da lógica daquele mundo indiferente a si. Mas a apatia e o sentimento de vazio só fortaleciam sua própria interioridade, visto que era um homem de vida interior muito intensa, que criava uma relação com as memórias para afugentar a morbidez niilista do desalento.
Embora viesse de uma pequena cidade da Itália chamada Livorno, logo se lançou na vida boêmia da Paris do começo do século XX, onde as aparências escondiam o apogeu elegante da decadência que se anunciaria com as guerras subseqüentes. Neste universo, saboreou o triunfo e muitas quedas numa vida que nem sempre fora regulada e, mesmo inquieto com os rumos do mercado, sua obra despontava entre os grandes de sua época porque já nascera grande, como o próprio autor de velhas façanhas e peripécias, vivendo na penúria. Ao se lançar na boemia daqueles dias, traduziu o que de melhor podia se pronunciar como arte moderna.
Em 1920, após duas décadas lutando contra a tuberculose, enfrentou uma complicação fatal de meningite que o levaria a óbito, vivendo precariamente e alimentando-se de forma desordenada. A ousadia deste artista, de família judia que estudou arte clássica e que desbravou a Pátria das Letras, legou importantes documentos para a contextualização da arte naquele início de século. O tratamento de sua atuação poderia sugerir muitos e diversos desdobramentos para o tempo que se estabelecia como uma era que se anunciaria precária, retocada de poucas tecnologias, porém determinaria o artista que se projetava naquele período.
            A incompreensão àquele tipo de sociedade, já se propondo pelos ditames do consumo, tende a lhe isolar num mundo imaginário que poderia ser classificado como burlesco, por optar por viagens ermas, frente interiorização de si no abandono de quase tudo. O verniz aristocrático do homem moderno, mesmo com certo exagero de sua parte, marcará época ao fazer a exaltação da individualidade como meta para acorrentar os indivíduos pelas normas do espírito singular do “ter”, os quais valorizam o bom senso uniforme da exclusão social pela necessidade de se discutir um padrão e uma verdade mecanicista nas relações sociais, num universo de poucas opções.
A valorização de sua obra alcançou um processo espantoso após sua morte. Era conhecido como “Maudit” que em francês, discorre sobre sua personalidade no Pantèon dos amaldiçoados, de modo mais incisivo, visto que seus trejeitos conceituavam um estilo de vida que ia muito além da mera formalidade. Na verdade, Modigliani não se enquadrava na pluralidade de tendências que aplacavam os movimentos reinantes no mundo daquelas artes. Estava fora do lugar comum e isto fazia de sua personalidade o figurativo irreconhecível no panorama daquele tempo, no entanto suas marcas ponderaram o que de melhor se produziu com o misto da independência. Sua vida galante e boêmia refletia a vivência dos melhores e dos piores prazeres adquiridos na sobrevida, martirizando-o pela fragilidade de sua saúde, legada pelo consumo exagerado de haxixe e outras drogas como láudano, absinto e vinho nas noitadas de uma época apaixonante que o acompanhariam por longos dias. Seu espírito mundano, definida pela ousadia de sua personalidade, desafiava sua precocidade no trajeto de sua estada naquela Paris e, mesmo em face do seu percurso, definido exclusivamente pela linha austera do seu traço, tinha o diferencial que o exaltava diante das injúrias que a sorte o legou nas agruras da sina que o mataria, assim como matou a Dama das Camélias...
No exposto há sempre uma concepção fatalista para os resultados desse projeto de vida naquela sociedade, pois seus desejos de não se artificializar no contexto da personificação de um modelo “enquadrado” inverte o diálogo com a realidade para torna-lá trágico e de difícil acesso. Enfim, aquele Poeta Maldito era dado a Odes, Opúsculos e Exílios, se reservando as paixões mais íntimas que corroboraram para um enfrentamento contundente junto aos contrastes de sentimentos que o vazio desolador proporcionava ao homem no seu intenso convívio naqueles dias de guerras.
Não é difícil, contudo, imaginar aonde esse artista fecundo chegaria. Embora seus maiores interesses se projetassem como os traços de suas esculturas, com pescoços alongados, numa nítida influência das estátuas egípcias, nas quais o corpo se verticaliza como um pedestal, Modigliani desde sempre trilhou um caminho que naturalmente o levaria ao Impressionismo, porém sua vertente metafísica fazia alusões nítidas de que em poucas horas seu traço retornaria, com força impactante, aos elos de sua formação cabalística, indo além dos retoques mais exóticos para se afirmar como um artista de transcendência. Este diálogo trágico com seu eu subjetivo, deverá ainda encontrar forte eco nas ações afetivas que o ligavam à literatura, por acreditar que desta forma chegava o mais próximo do eu que procurava na interioridade que lhe coube sentir no vazio humano, como matéria para a poesia que respirou e inspirou.
Nesta época descobre as belezas negras do continente africano e depõe suas máscaras para invernar pelos caminhos fascinantes das influências mitológicas da linguagem escultórica. Seus biógrafos reconhecem nesse momento o principio de uma descoberta fascinante que o despertaria para o que se tornaria evidente em sua obra: a realização dos próprios trajetos rumo ao sonho de uma realização não alcançada em vida.
Ao tempo de uma existência, como essa personagem das artes mais sinceras poderia se definir para despersonificar a essência dos contrastes que envolviam as incertezas do seu nítido silêncio? Primeiro, seria preciso dizer que habitou o mundo com a sensibilidade de um deus ao identificar nos lugares de memória a grandeza de servir, amar e ampliar tudo ao redor de quem o circundava. Era na verdade um homem do mundo. Eis o que os tempos do mundo deveras ter lhe dito: somos no espírito deste tempo, Estátuas de Mármore. Ele poderia ter reivindicado para seus muitos eus a máxima de Terêncio (185 – 159 aC) adotada integralmente pelo pensador Karl Marx: “Sou humano: nada do que é humano reputo alheio a mim”.
Não será surpreendente encontrar neste pequeno Inventário de palavras, transcritas em forma de poesia, o Modigliani de outras épocas. São poemas que retratam o embate intelectual deste com os muitos apaixonados encontrados nos cafés de Montmartre daqueles dias. Neste bairro boêmio francês, palco dos muitos encontros entre jovens pintores renascidos da influência de Van Gogh, Cézanne, Guaguin e Toulouse-Lautrec, um dia um jovem judeu sonhou viver a intensa alegria de um encanto sem pressa. Mais tarde as imagens dessa vida errante, retratada tão esplendidamente por Toulouse-Lautrec, seria motivo para tão faustuosa tragédia, vivida provavelmente pelo talentoso e autêntico Modigliani, auspiciosamente aclamado pela forma que se revelaria pronto, especialmente por meio do olhar vazio e languido deposto em seus retratos, parecendo mover o artista em direção à sua empreitada por uma linguagem própria encarnada naquilo que Charles Baudelaire docemente chamava de vida moderna. A sentença deste nortearia a sina fascinante do outro: “Por sorte, surge de tempos em tempos quem coloque as coisas no devido lugar: críticos, amantes da arte, espíritos inquisitivos...”.
Nisto, era possível pensar como as pessoas o viam naquele universo de conflitos e poucas atribuições? Então, parei para imaginar que ele talvez fosse um homem que fazia o que dizia e dizia o que fazia. As gentes daquele mundo externas a ele poderiam concordar ou não com as suas ações, discursos e pensamentos, que foram sendo desenvolvidos ao longo de sua vida, mas uma coisa era certa, eles eram absoltamente fiéis e coerentes ao que acreditava como entendimento de uma dignidade.
Essa experiência, em particular, pode nos dizer muito sobre a intensidade poética encontrada nos versos soltos desta obra que tenta falar de um Modigliani para além dos seus propósitos, revelando o fascínio com que sua breve e tórrida existência causava a qualquer vivente ao se deparar com a linguagem simbólica, encarnada neste grandioso pintor que um dia tentou idealizar sua arte, com arranjos poéticos, ao descrever o pouco que sentia ao ser apresentado ao mundo como idealista, ao tentar redesenhar seus traços em iluminuras e abstrações que flertavam sob o olhar impetuoso e simplificativo do feminino, privilegiando o conteúdo nostálgico do olhar vazio, que um dia transporia luz!
O exemplo exposto mostra que as experiências de aprendizagens pela alteridade de um artista ou num artista consistem em várias formas de conceber a própria pluralidade, quando na diversidade, outros olhares podem definir a mesma contemporaneidade. Olhar o mundo a partir de muitas e diferentes formas privilegia o homem para viver a ânsia de todas as suas descobertas, passando pelas explicações conceituais até adentrar na lógica do pertencimento, onde se vive em vários mundos numa única vida.
No consenso de todos os acontecimentos trágicos daquele tempo, Modigliani permanece sendo um ideal fantástico, um ideal da mocidade, entre tantos seres reais e abstratos, onde a arte nem sequer permanece convencional, mas ao menos, este personagem vai além do mero romance... É como um espírito... Que resiste a sua própria precariedade. Sua loucura foi desafiar os mistérios que soube cultivar, podendo com todo o fracasso que vivenciou, apresentar-se ele mesmo como um verdadeiro exemplo do misterioso processo da arte, que tudo sabe cultuar na sublime nota de uma realidade decadente...


 
 
Imprensa Foucaultiana®