Os Ímpetos de Um Esteta Solitário
Núcleo de
Estudos Foucaultiano © Gênesis Naum
de Farias
- Professor da Universidade
Estadual do Piauí – UESPI.
São Raimundo
Nonato/PI/Brasil.
Os últimos
anos de vida do pintor italiano Amedeo Modigliani (1884-1920) retratam o que
sua própria sina documentou em seus feitos gloriosos: era um tormento vigiado
de perto pelas frias noites de desilusões e glórias. Talvez retratassem seu
estilo puro e paciente ao ver as coisas na elegância de um tempo sofrivelmente
cansado de aparências e vanguardas ciumentas. Ao tempo de uma existência, como
poderia se definir para despersonificar a essência dos contrastes que o
envolvia nas incertezas do seu nítido silêncio? Primeiro, seria preciso dizer
que era um homem do mundo, habitado por muitos lugares e composto por uma
simbologia frenética, permeada de muitos desencontros. O existir nesse caso, já
efetivava configurações de certa melancolia, com oscilações de temperamento que
tendia a lembrar a nebulosidade criada pelas marcas do fracasso. Em tudo
absorvia o herói ultra-romântico; na forma, nas ideias, nos hábitos, nas
singularidades; em tudo marcado por um profundo mal-estar, que o consumirá por
um tédio incurável.
Em sua obra a
preocupação estética vai muito além de uma pretensa necessidade de
representação, pelo contrário, empenhava-se em captar não meramente a
aparência, mas a personalidade de seus modelos. A franqueza era uma competência
a mais quando a sua nítida capacidade de alcançar a alma de quem o retratava,
transmitia muito do que realmente sentia ao descrever a essência do que
pintava, captando através da luminosidade opaca, o onírico de um simples olhar
que se abria como janelas da alma. Ao perceber isto, Modigliani traçava seu
rumo nas artes daquele tempo, frente aos tormentos íntimos de um vazio
fantasmagórico.
Nesta busca
pelo absoluto e fugindo sempre das convenções sociais para preencher sua
necessidade de silêncio, torna-se tudo e nada ao mesmo tempo. No entanto,
enfrentou com vivacidade o cotidiano por combinar
ações e trejeitos de um dândi na
Paris urbanizada, ao tempo em que buscava para si a ternura de um humilde eremita
a procura da irretocável sublimidade nos gestos mais sinceros.
Morto aos 35
anos, Modigliani foi maior que a sua própria obra. Na verdade, seu nome é
lembrado na história da arte contemporânea como um feito trágico na desordem monótona
de uma época recheada de grandes vultos, onde o improviso não cabia nem era
aceito como padrão, isto porque num século de grandes ideias, suas ações eram
movidas pela capacidade de viver na intensa sintonia de uma lida cheia de
presságios e atribulações. Como suas figuras de olhar vazios, o artista proclamou
sua marca numa época atormentada. Tendo sido na realidade composto por
referências que davam sentido ao que procurava, se propôs na busca pelo
absoluto de tudo: de romanesco a anarquista, tudo o encerrava num ermo de
incompreensões, diante do verniz aristocrático, pueril e provinciano da lógica
daquele mundo indiferente a si. Mas a apatia e o sentimento de vazio só
fortaleciam sua própria interioridade, visto que era um homem de vida interior
muito intensa, que criava uma relação com as memórias para afugentar a morbidez
niilista do desalento.
Embora viesse
de uma pequena cidade da Itália chamada Livorno, logo se lançou na vida boêmia
da Paris do começo do século XX, onde as aparências escondiam o apogeu elegante
da decadência que se anunciaria com as guerras subseqüentes. Neste universo,
saboreou o triunfo e muitas quedas numa vida que nem sempre fora regulada e, mesmo
inquieto com os rumos do mercado, sua obra despontava entre os grandes de sua
época porque já nascera grande, como o próprio autor de velhas façanhas e
peripécias, vivendo na penúria. Ao se lançar na boemia daqueles dias, traduziu
o que de melhor podia se pronunciar como arte moderna.
Em 1920, após
duas décadas lutando contra a tuberculose, enfrentou uma complicação fatal de
meningite que o levaria a óbito, vivendo precariamente e alimentando-se de
forma desordenada. A ousadia deste artista, de família judia que estudou arte clássica e que desbravou a Pátria das Letras, legou importantes documentos para a
contextualização da arte naquele início de século. O tratamento de sua atuação
poderia sugerir muitos e diversos desdobramentos para o tempo que se estabelecia
como uma era que se anunciaria precária, retocada de poucas tecnologias, porém determinaria
o artista que se projetava naquele período.
A
incompreensão àquele tipo de sociedade, já se propondo pelos ditames do
consumo, tende a lhe isolar num mundo imaginário que poderia ser classificado
como burlesco, por optar por viagens ermas, frente interiorização de si no
abandono de quase tudo. O verniz aristocrático do homem moderno, mesmo com
certo exagero de sua parte, marcará época ao fazer a exaltação da
individualidade como meta para acorrentar os indivíduos pelas normas do
espírito singular do “ter”, os quais valorizam o bom senso uniforme da exclusão
social pela necessidade de se discutir um padrão e uma verdade mecanicista nas
relações sociais, num universo de poucas opções.
A valorização
de sua obra alcançou um processo espantoso após sua morte. Era conhecido como “Maudit” que em francês, discorre sobre
sua personalidade no Pantèon dos
amaldiçoados, de modo mais incisivo, visto que seus trejeitos conceituavam um
estilo de vida que ia muito além da mera formalidade. Na verdade, Modigliani
não se enquadrava na pluralidade de tendências que aplacavam os movimentos
reinantes no mundo daquelas artes. Estava fora do lugar comum e isto fazia de
sua personalidade o figurativo irreconhecível no panorama daquele tempo, no
entanto suas marcas ponderaram o que de melhor se produziu com o misto da
independência. Sua vida galante e boêmia refletia a vivência dos melhores e dos
piores prazeres adquiridos na sobrevida, martirizando-o pela fragilidade de sua
saúde, legada pelo consumo exagerado de haxixe e outras drogas como láudano, absinto
e vinho nas noitadas de uma época apaixonante que o acompanhariam por longos
dias. Seu espírito mundano, definida
pela ousadia de sua personalidade, desafiava sua precocidade no trajeto de sua
estada naquela Paris e, mesmo em face do seu percurso, definido exclusivamente
pela linha austera do seu traço, tinha o diferencial que o exaltava diante das
injúrias que a sorte o legou nas agruras da sina que o mataria, assim como
matou a Dama das Camélias...
No exposto há
sempre uma concepção fatalista para os resultados desse projeto de vida naquela
sociedade, pois seus desejos de não se artificializar no contexto da
personificação de um modelo “enquadrado” inverte o diálogo com a realidade para
torna-lá trágico e de difícil acesso. Enfim, aquele Poeta Maldito era dado a
Odes, Opúsculos e Exílios, se reservando as paixões mais íntimas que
corroboraram para um enfrentamento contundente junto aos contrastes de
sentimentos que o vazio desolador proporcionava ao homem no seu intenso
convívio naqueles dias de guerras.
Não é difícil,
contudo, imaginar aonde esse artista fecundo chegaria. Embora seus maiores
interesses se projetassem como os traços de suas esculturas, com pescoços alongados,
numa nítida influência das estátuas egípcias, nas quais o corpo se verticaliza
como um pedestal, Modigliani desde sempre trilhou um caminho que naturalmente o
levaria ao Impressionismo, porém sua vertente metafísica fazia alusões nítidas
de que em poucas horas seu traço retornaria, com força impactante, aos elos de
sua formação cabalística, indo além dos retoques mais exóticos para se afirmar
como um artista de transcendência. Este diálogo trágico com seu eu subjetivo, deverá ainda encontrar
forte eco nas ações afetivas que o ligavam à literatura, por acreditar que
desta forma chegava o mais próximo do eu
que procurava na interioridade que lhe coube sentir no vazio humano, como
matéria para a poesia que respirou e inspirou.
Nesta época
descobre as belezas negras do continente africano e depõe suas máscaras para
invernar pelos caminhos fascinantes das influências mitológicas da linguagem
escultórica. Seus biógrafos reconhecem nesse momento o principio de uma descoberta
fascinante que o despertaria para o que se tornaria evidente em sua obra: a
realização dos próprios trajetos rumo ao sonho de uma realização não alcançada
em vida.
Ao tempo de
uma existência, como essa personagem das artes mais sinceras poderia se definir
para despersonificar a essência dos contrastes que envolviam as incertezas do
seu nítido silêncio? Primeiro, seria preciso dizer que habitou o mundo com a
sensibilidade de um deus ao identificar nos lugares de memória a grandeza de
servir, amar e ampliar tudo ao redor de quem o circundava. Era na verdade um
homem do mundo. Eis o que os tempos do mundo deveras ter lhe dito: somos no
espírito deste tempo, Estátuas de Mármore. Ele
poderia ter reivindicado para seus muitos eus
a máxima de Terêncio (185 – 159
aC ) adotada integralmente pelo pensador Karl Marx: “Sou
humano: nada do que é humano reputo alheio a mim”.
Não será
surpreendente encontrar neste pequeno Inventário
de palavras, transcritas em forma de poesia, o Modigliani de outras épocas. São
poemas que retratam o embate intelectual deste com os muitos apaixonados encontrados
nos cafés de Montmartre daqueles dias. Neste bairro boêmio francês, palco dos
muitos encontros entre jovens pintores renascidos da influência de Van Gogh,
Cézanne, Guaguin e Toulouse-Lautrec, um dia um jovem judeu sonhou viver a
intensa alegria de um encanto sem pressa. Mais tarde as imagens dessa vida
errante, retratada tão esplendidamente por Toulouse-Lautrec, seria motivo para
tão faustuosa tragédia, vivida provavelmente pelo talentoso e autêntico
Modigliani, auspiciosamente aclamado pela forma que se revelaria pronto,
especialmente por meio do olhar vazio e languido deposto em seus retratos,
parecendo mover o artista em direção à sua empreitada por uma linguagem própria
encarnada naquilo que Charles Baudelaire docemente chamava de vida moderna. A
sentença deste nortearia a sina fascinante do outro: “Por sorte, surge de tempos em tempos quem coloque as coisas no devido
lugar: críticos, amantes da arte, espíritos inquisitivos...”.
Nisto, era
possível pensar como as pessoas o viam naquele universo de conflitos e poucas atribuições?
Então, parei para imaginar que ele talvez fosse um homem que fazia o que dizia
e dizia o que fazia. As gentes daquele mundo externas a ele poderiam concordar
ou não com as suas ações, discursos e pensamentos, que foram sendo
desenvolvidos ao longo de sua vida, mas uma coisa era certa, eles eram
absoltamente fiéis e coerentes ao que acreditava como entendimento de uma
dignidade.
Essa
experiência, em particular, pode nos dizer muito sobre a intensidade poética
encontrada nos versos soltos desta obra que tenta falar de um Modigliani para
além dos seus propósitos, revelando o fascínio com que sua breve e tórrida
existência causava a qualquer vivente ao se deparar com a linguagem simbólica,
encarnada neste grandioso pintor que um dia tentou idealizar sua arte, com
arranjos poéticos, ao descrever o pouco que sentia ao ser apresentado ao mundo
como idealista, ao tentar redesenhar seus traços em iluminuras e abstrações que
flertavam sob o olhar impetuoso e simplificativo do feminino, privilegiando o
conteúdo nostálgico do olhar vazio, que um dia transporia luz!
O exemplo
exposto mostra que as experiências de aprendizagens pela alteridade de um
artista ou num artista consistem em várias formas de conceber a própria
pluralidade, quando na diversidade, outros olhares podem definir a mesma
contemporaneidade. Olhar o mundo a partir de muitas e diferentes formas
privilegia o homem para viver a ânsia de todas as suas descobertas, passando
pelas explicações conceituais até adentrar na lógica do pertencimento, onde se
vive em vários mundos numa única vida.
No consenso de
todos os acontecimentos trágicos daquele tempo, Modigliani permanece sendo um
ideal fantástico, um ideal da mocidade, entre tantos seres reais e abstratos,
onde a arte nem sequer permanece convencional, mas ao menos, este personagem
vai além do mero romance... É como um espírito... Que resiste a sua própria
precariedade. Sua loucura foi desafiar os mistérios que soube cultivar, podendo
com todo o fracasso que vivenciou, apresentar-se ele mesmo como um verdadeiro
exemplo do misterioso processo da arte, que tudo sabe cultuar na sublime nota
de uma realidade decadente...
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